Uma tempestade, o medo de morrer e um juramento de fé diante da fragilidade da vida levaram Martinho Lutero a dedicar-se à igreja.
Tendo ingressado em um convento agostiniano, uma “experiência de redenção” o levou a concluir que apenas a fé na graça de Deus salvaria as almas do fogo do inferno.
Na época, a igreja romana, carente de recursos, espalhou monges mendicantes para venderem certificados papais que “anulavam” os pecados. O slogan era: “tão logo o dinheiro tilintar nos cofres, a alma subirá aos céus”. Foi um sucesso essa campanha publicitária.
Alguns desconfiados compradores alemães das indulgências papais quiseram certificá-las junto à Universidade de Wittemberg, entidade, aos olhos dos penitentes, com suposta capacidade teológica de autenticação.
Para desespero de vendedores e compradores, o professor consultado foi Lutero que se negou a atestá-las. Aos 31 de outubro de 1517 afixou um cartaz na igreja no qual fundamentava a denegação com base em 95 teses.
Pressionado por Roma e sujeito a excomunhão, ainda assim Lutero negou obediência ao papa e afirmou que a bíblia seria a única fonte de autoridade espiritual. Cada pessoa era seu próprio sacerdote.
503 anos, 5 meses e 20 dias após Lutero colar o pergaminho da reforma à porta da igreja, o Supremo Tribunal Federal deverá decidir, como pano de fundo da pandemia, se a fé deve ser exercida no profundo da consciência pessoal e silêncio do lar, ou precisará de intermediários para traduzir os ensinamentos contidos na sagrada escritura.
O digladiar das teses jurídicas visa autorizar os governadores e prefeitos, dentro do seu microcosmo, a definirem as regras de combate à pandemia covidiana. Afinal, quem mais próximo do inferno viral para sentir o calor das chamas?
O julgamento ultrapassa o caso específico. A sociedade está perplexa. O premente é dar um fim ao descompasso que vive o STF, respeitado órgão colegiado dos temas constitucionais, por tornar-se um onipresente, onipotente e onisciente analista de matérias que vão do alfinete ao foguete.
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O caso concreto foi analisado em abril de 2020, com o acolhimento integral da corte pela tese de autonomia aos entes federativos. Mais uma vez, no início deste ano, submeteu-se ao escrutínio dos supremos ministros e foi referendado.
Qual a surpresa? Sábado (03.04.2021), um magistrado deferiu liminar com entendimento contrário ao pleno da corte. O imbróglio levou o ministro presidente a submeter o caso julgado a outro julgamento. Seria hilário, não fosse triste, a bateção de cabeças dos togados.
O ambiente da casa está atormentado. Indivíduos não sabem conviver com os princípios da Távola Redonda. Juristas se esmeram em divergir por divergir ou, o pior, demonstram possíveis alinhamentos como prova de dívidas de consciência.
Um verdadeiro desperdício de energia intelectual.
A corte precisa urgente e humildemente assumir uma postura institucional apaziguadora por parte de seus integrantes, a fim de evitar o aumento do desprestígio perante o povo.
Lutero, vivo fosse, talvez pregasse outras 95 teses em defesa de dogmas inquestionáveis de respeito ao cidadão (o penitente) e principalmente à constituição (a bíblia).
Para a atenção pública, as deliberações daquela casa precisam transitar em ambiente transparente e claramente imparcial, suportadas tecnicamente e, mais importante, que não pairem sobre elas quaisquer dúvidas quanto a interesses não confessáveis. Evite-se o cisma no seio desta desalentada sociedade. Não o desejamos!
Paz e bem!
Otávio Santana do Rêgo Barros é general do Exército e ex-porta-voz da presidência da República. Escreve aqui às quartas-feiras
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