“[…] Em uma unidade básica de saúde (UBS) no centro da capital paulista, fui aconselhado a ir a uma igreja e entender sobre a minha sexualidade, pois poderia ter algo de errado com meu psicológico em decorrência disso. Ou seja, ser gay teria me levado a ter crises de ansiedade e pânico e a igreja poderia me tratar, mas um profissional habilitado não”, Igor Trindade, homem cis, gay e nutricionista. Procurou o serviço de saúde porque sofria de transtorno de ansiedade generalizada.
“Na minha classe, de 100 alunos, 26 são LGBT! Mas infelizmente a saúde de LGBTQIA+ não é abordada durante o curso, só recentemente, na disciplina de Saúde Mental e da Saúde da Família, começaram a falar do tema durante 4 horas”, Ana Luiza Ferreira, mulher transsexual, bissexual e estudante de medicina.
“[…] Recentemente, em 2018, estive em uma casa de acolhimento para travestis em situação de rua. Durante o encontro, uma moradora me relatou que existe uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) na mesma rua, que não as atende. Diante da minha indignação, ela contou que teve uma dor de ouvido muito forte e se dirigiu ao local, tendo sido orientada a procurar o Centro de Referência e Treinamento DST/Aids (CRT), que é capacitado para atender travestis. Por uma dor de ouvido?!”, Márcia Rocha, travesti, advogada.
Os depoimentos acima são trechos retirados de alguns relatos que abrem o livro Saúde LGBTQIA+: Práticas de Cuidado Transdisciplinar (Manole, 2021) e ilustram as dificuldades enfrentadas por pessoas LGBTQIA+, sigla para lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, queer/questionando, intersexo, assexuais e outros) no acesso ao sistema de saúde. O relato da estudante de medicina, Ana Luiza, deixa claro que a falha já começa na universidade, onde o assunto é pouco ou nada abordado. Vale lembrar que estamos falando sobre um público que representa pelo menos de 10% a 20% da população brasileira.
“Ainda não existe uma disciplina obrigatória na grade curricular do curso de medicina sobre esse assunto, mas algumas faculdades já começam a criar disciplinas optativas, dado o interesse. Nós jogamos a temática em sala de aula e os alunos se interessam e querem mais. Mas sentimos falta de referências nacionais sobre a realidade brasileira. O livro surgiu para suprir essa necessidade”, explica o psiquiatra Saulo Cisca, um dos editores da obra.
Com o objetivo de melhorar o atendimento deste público, Cisca, que coordena a Área da Saúde da Aliança Nacional LGBTI+, se juntou a outros dois colegas, a pediatra e hebiatra Andrea Hercowitz, membro do conselho da ONG Mães pela Diversidade – SP; e o médico de família e comunidade Ademir Lopes Junior, professor da Faculdade de Medicina da USP, para dar origem à essa obra inédita na literatura médica brasileira.
O livro, que em menos de dois meses após seu lançamento já está na segunda edição, contou com a participação de 140 colaboradores que discorreram sobre as mais diversas temáticas dentro deste universo. Há desde profissionais das mais variadas áreas da saúde, que ensinam, pesquisam e cuidam de pessoas LGBTQIA+, até estudantes e pessoas de movimentos sociais.
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“Nós quisemos buscar pessoas LGBT para participar dos capítulos que diziam respeito a sua identidade e que pudessem escrever sobre situações de vulnerabilidade que tem a ver com o contexto brasileiro. Porque neste tema, além da prática, tem a história de cada um. Por exemplo, como é o LGBT sofrer preconceito durante uma consulta médica. Queríamos que quem escrevesse sobre isso também tivesse conhecimento do tema na prática”, diz Ademir.
O manual é escrito com linguagem clara e objetiva para esclarecer temas importantes, mas pouco abordados na formação de profissionais de saúde, como práticas sexuais e prazer, processo de transição em pessoas trans, saúde física e mental, aspectos religiosos, legais e éticos, entre outros. Dada a escassez de literatura sobre o assunto, até mesmo pessoas fora do universo dos cuidados de saúde, mas que se interessam pela temática, irão gostar do livro. Apesar de ser fundamentado em pesquisas e referências científicas, a linguagem é simples e didática.
“Procuramos fazer uma escrita com uma linguagem que todos pudessem entender e hoje vemos que deu certo. Muitas mães e pais estão comprando porque o livro aborda muitas coisas que não são médicas, por exemplo, como se forma a identidade de gênero”, diz Andrea.
Além do olhar dos profissionais de saúde, o livro complementa sua visão transdisciplinar trazendo a perspectiva de diferentes crenças religiosas. Os editores questionaram lideranças católicas, budistas, evangélicas, judaicas, islâmicas, espíritas e candomblecistas sobre como essas doutrinas veem a pluralidade de identidades sexuais.
“Família, escola e religião fazem parte da vida das pessoas. Esses deveriam ser locais de acolhimento, mas são locais de expulsão e preconceito. Decidimos abordar esse assunto para ver se existe a possibilidade de acolhimento desse público dentro de cada religião.”, explica a pediatra. As respostas são surpreendentes.
Tabus e temas inéditos
Os editores não pouparam esforços nem ficaram com meias palavras. “Discutimos todos os detalhes, mesmo os mais polêmicos”, afirma Saulo. Além da preocupação de colocar um viés LGBT em todas as seções, nenhuma prática foi criticada. Pelo contrário. Por exemplo, há um capítulo dedicado a brinquedos sexuais e outro que aborda a violência entre casais gays.
Assim como ocorreu na parte sobre religião, em que cada representante escreveu sobre como a diversidade é vista dentro de sua doutrina, os editores convidaram psicólogas de diversas linhas da psicologia para que elas discorressem sobre como cada uma delas explica a diversidade.
No último capítulo explica-se o que cada profissional de saúde tem que saber para atender pessoas LGBT, variando desde agentes comunitários de saúde até farmacêuticos. Há também um anexo que lista todas as redes de assistência, ensino e pesquisa em saúde LGBT espalhados pelo Brasil, para quem tiver interesse ou quiser referências sobre onde buscar atendimento.
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